No século XXI, refletir
sobre o Dia Mundial da Criança pressupõe que se questione e clarifique o
conceito de criança. Atualmente concebe-se a criança por aquilo que ela já é e
que a faz ser criança, como um adulto em miniatura ávida de formação, como ser
humano vulnerável, carente de proteção e de conhecimento para ser quem deverá
ser?
Não obstante uma aceção mais
ou menos romântica da noção de criança, perspetivamos que esta deve ser concebida
como “pessoa”, no sentido ético do termo, em permanente processo de
desenvolvimento.
A criança como “pessoa”
é, à luz do que concebia Kant na obra Metafísica
dos Costumes, um “fim em si mesmo”, um ser humano com dignidade própria,
com um valor intrínseco. Ela não pode nem deve ser entendida como meio de
subsistência, mão-de-obra barata e capaz de produzir trabalhos, cuja minúcia
exigem a pequenez e a delicadeza de umas mãos infantis para serem perfeitos.
A “criança operária” foi
uma realidade do século XIX, uma consequência visível da revolução industrial,
que não pode persistir na sociedade do conhecimento e da informação atual, que
se pretende ética e axiologicamente informada.
Desde meados do século XX
que se assiste – um pouco por todo o Ocidente, a nível filosófico e educacional
– a um enfático retorno ao humanismo, ao aumento da preocupação com o Homem na
sua dimensão subjetiva. As atrocidades cometidas contra a humanidade durante a
2ª Guerra Mundial conduziram à reflexão e ao reconhecimento do Homem como um
ser livre e um projeto a realizar.
É neste contexto
pós-guerra de grande ênfase humanista – em que filosófica e educacionalmente se
reconhece o Homem como um ser singular, livre, que constrói a sua identidade ao
longo do processo da sua vida no diálogo com e pelos outros – que se assiste à
comemoração do primeiro Dia Mundial da Criança.
Em 1950,
a Federação Democrática Internacional da Mulheres propôs às Nações Unidas que
criasse um dia dedicado às crianças de todo o mundo. Subjacente a este pedido
estava a conceção da criança como “pessoa” em desenvolvimento, como um ser com
valor em si mesmo, que tem o direito de realizar a sua potência de ser, sendo gnosiológica
e moralmente conscientes, autónomos, membros de uma determinada comunidade,
onde constrói a sua identidade sociocultural e progressivamente se
responsabiliza por participar ativamente na reconstrução cultural da sua
sociedade.
A criança é um
cidadão. A afirmação da criança como cidadão não se reporta apenas à dimensão
administrativa-política, que a consigna como um membro de um determinado
Estado, a quem este confere um número de identificação. A atribuição da
cidadania à criança refere-se ao reconhecimento que a sociedade faz desta como
seu membro ativo, cuja identidade resulta da unicidade dinâmica do diálogo e da
interação entre a dimensão singular e social da “pessoa” que cada criança é.
Para que este
processo dinâmico de construção de identidade se opere é crucial que sejam
criadas condições que garantam o bem-estar físico, psicológico da criança e o
seu desenvolvimento holístico. A educação assume neste âmbito um papel
fundamental, na medida em que se afirma como um meio de garantir a igualdade de
oportunidades a todas as crianças, favorecendo-lhes experiências formativas e
pedagógicas que lhes permitem desenvolver as suas competências pessoais e
sociais e aceder ao património axiológico e cultural que circunstancia a sua
identidade.
Formar a criança
como cidadão não consiste apenas em transmitir-lhe conhecimentos que ela não
sabe, trata-se de prepará-la para ser uma “pessoa” consistente, autónoma, capaz
de contribuir na construção do seu conhecimento. O processo educativo que
favorece a autonomia da criança é aquele que a reconhece como um ser singular,
mas também como um ser vivido, para quem a integração do conhecimento se
constitui uma mais-valia, pois lhe permitirá conhecer, problematizar e refletir
sobre a realidade.
Cada criança é
um livro de curiosidade em branco, em busca de um sentido para a vida. Para
atribuição desse sentido contribui os afetos, os cuidados, os valores que os
outros (sociedade, pais educadores/professores) lhe dedicam, ensinam e a fazem
experienciar.
O Dia Mundial da
Criança alerta cada um de nós para a responsabilidade que temos em admitir a
criança como um ser singular, potencialmente cidadão livre, que tem o direito
de ser para se reconhecer membro ativo e responsável de uma sociedade em
permanente mudança, que se quer sustentável e promotora de vida para as
gerações vindouras. Este dia comemorativo apela-nos ainda para a necessidade de
agirmos em função de uma sociedade global sem “crianças operárias” e sujeitas à
opressão.
Josélia Ribeiro da
Fonseca
Professora Auxiliar
Departamento de
Ciências da Educação
Universidade dos
Açores
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